A política externa militar da China

 Defesa da soberania e integridade territorial

As capacidades A2/AD são uma componente essencial na defesa da integridade territorial de qualquer jurisdição. Representam a pretensão de negar a uma terceira parte – normalmente um adversário – tanto o acesso como a capacidade de manobra em determinado território. Este conceito foi criado pelo Pentágono, não sendo utilizado na retórica oficial chinesa. Contudo, Pequim utiliza outros conceitos que se aproximam do Anti-acesso, como Defesa Ativa ou Operações de Contraintervenção, Sistema de Sistemas (tixi zuozhan) e os “três nãos” (san fei): Noncontact (fei jie rong), nonlinear (fei xian shi) and nonsymmetric (fei duichen). Para os chineses, a Contra-intervenção refere-se a um conjunto de tarefas operacionais com o intuito de prevenir a intervenção estrangeira num conflito, sendo que a estratégia A2/AD é colocada ao serviço deste intuito.

Destacamos a importância dos “três nãos” para as autoridades chinesas, modo como descrevem a natureza da guerra na atualidade, denotando a presença destas técnicas militares na Guerra do Golfo e nas operações da OTAN na Sérvia. A não linearidade (nonlinearity), trazida por um campo de batalha cada vez mais tecnologizado, busca uma rápida mistura e confusão das tropas no campo de batalha, em parte para mitigar os efeitos da precisão do golpe inimigo, assentando em ataques aéreos fortes ao núcleo da capacidade de ataque adversária. Torna-se cada vez mais difícil obter fiabilidade em áreas como reconhecimento e contrarreconhecimento, ou emboscadas e defesa contra emboscadas. Torna-se também mais difícil obter precisão total nas acções que se realizam no campo de batalha. O termo/conceito Noncontact consiste em atingir o adversário a partir de longas distâncias, com sistemas informatizados e capacidades over the horizon. Christopher Twomey afirma que as capacidades de Informação, Vigilância e Reconhecimento são um pré-requisito para efectuar ataques à distância (non-contact).

Assimetria (Nonsymmetric) é um conceito muito utilizado nas obras que examinam esta matéria. Faz parte da estratégia chinesa procurar armamento assimétrico, métodos não convencionais que permitam, perante um adversário com capacidades notoriamente superiores, diminuir-lhe a vantagem. Trata-se de diminuir o valor da superioridade.

Em artigos militares chineses é cada vez mais frequente a utilização do termo Shashoujian, normalmente traduzido para inglês como Assassin’s Mace. Embora não se consiga saber com segurança a que se refere o termo, podemos, no entanto, conjecturar que seja um elemento assaz destrutivo, como uma ogiva nuclear, um míssil capaz de destruir grandes embarcações, ou uma infraestrutura bastante avançada de guerra informática, que corrompa os sistemas de transporte, a matriz de comunicação ou a rede elétrica de um determinado Estado. De fato, Christopher Twomey refere que armas de elevado grau destrutivo continuam a fazer parte da busca pela assimetria. Contudo, este termo engloba, presentemente, uma significação mais abrangente onde não se inserem apenas balas de pratas, mas também a integração de sistemas, a capacidade de realizar operações conjuntas, bem como as capacidades de Informação, Vigilância e Reconhecimento.

Este aspecto está totalmente em conformidade com a promoção do “Desenvolvimento Científico” por Hu Jintao: o desenvolvimento científico das forças armadas chinesas é essencial para que estas estejam aptas a combater nas guerras atuais, altamente exigentes a nível tecnológico. Esta conexão entre “Desenvolvimento Científico” e necessidades de desenvolvimento tecnológico na área militar está plasmada nos crescentes esforços de aprofundar a informatização e natureza científica do treino do ELP.

Um instrumento de medição da importância das técnicas de A2/AD é o investimento em equipamento militar que permite desenvolver a capacidade de antiacesso. Estas capacidades são bastante importantes para a Marinha do ELP, pois quase todas as disputas fronteiriças terrestres que envolvem a China foram parcialmente resolvidas, sendo que o foco de tensão recai, atualmente, sobre as disputas no Mar do Sul da China, tendo sempre a questão de Taiwan em atenção. Estes três palcos, com forte componente marítima, exigem capacidades que neguem o acesso de um possível adversário ou litigante. Na Marinha, o reforço das capacidades A2/AD fica bem patente na frota de destróieres com mísseis teleguiados, uma numerosa frota de pequenos barcos lança-mísseis, bem como submarinos bastante silenciosos. Os submarinos são, porventura, a capacidade mais importante do ELP nas operações A2/AD. A localização de um submarino silencioso é uma das tarefas militares mais difíceis. Este equipamento está apto a lançar mísseis de cruzeiro antinavio, alguns deles muito capacitados, capazes de contrariar os dispositivos norte-americanos equipados com o sistema de defesa antimíssil Aegis.

Podemos observar exemplos onde este ramo do ELP foi chamado para negar o acesso a uma determinada área. Por exemplo após aquisição das ilhas Diaoyu/Senkaku pelo governo japonês, o envio de patrulhas marítimas regulares nas imediações das ilhas teve o intuito de demonstrar as pretensões chinesas de controlo das ilhas. Numa outra situação, Pequim aproveitou o aprisionamento de pescadores chineses, que pescavam junto do recife Scarborough por parte das autoridades filipinas, para conseguir o controle do recife. Ainda no Mar do Sul da China, o início da década de 90, o ELP construiu um aeródromo na Ilha Woody, pertencente às Paracel, e montou uma antena parabólica no recife Mischief, que faz parte das Spratly, modus operandi que continua a ser aplicado por Pequim.

O relatório de 2014 do Departamento de Defesa norte-americano referente à RPC, refere o controle e domínio do espectro da informação como pré-requisito essencial à estratégia A2/AD. Reconhece-se a eficácia da medida como forma de uma potência se superiorizar, colocando-se em posição vantajosa face a um adversário, através do controle e bloqueio da informação. A observação por parte das chefias militares chinesas das operações norte-americanas, levou à conclusão de que o espaço é essencial para a Guerra da Informação. Entre 2006 e 2012, a RPC lançou 16 satélites Yaogan, destinados a experiências científicas: a reconhecer recursos naturais e a prevenir catástrofes, através das pesquisas efetuadas. Para além desta classe de satélites, a RPC lançou satélites das classes Tianhui, Huanjing, Ziyuan, Haiyang, Fengyun e Beidou. Estes satélites têm diferentes funções, desde mapeamento do território, pesquisa de recursos naturais, investigação climatérica, monitorização de desastres, comunicação ou experiências científicas. Estava previsto o lançamento de mais 100 satélites chineses ao longo do ano 2015. Em simultâneo, a RPC está a desenvolver um programa para limitar o acesso ao seu espólio espacial em tempo de conflito.

O ELP olha para a Guerra da Informação como algo essencial tanto em tempos de guerra como em tempos de paz, pois a soberania da informação é parte importante do poder nacional de um Estado. A Information Warfare é parte importante da doutrina de Guerra Local, que prevê que o ELP seja capaz de, rapidamente, obter a supremacia tecnológica, ou de aceder e processar informação numa rede de Informaçáo, Reconhecimento e Vigilância eficaz. O ELP criou a Integrated Network and Electronic Warfare, para organizar e estruturar as suas forças no sentido de obter a supremacia da informação no princípio de um conflito, ou mesmo antes.

A Força de Foguetes (PLARF) desempenha também papel importante para a obtenção de uma capacidade A2/AD eficiente, dado que através dela se consegue resolver a questão da assimetria sem contato direto com as forças adversárias, usando armas de tal forma destrutivas que, mesmo sendo o seu detentor mais fraco no total das forças militares, repele o adversário e pode prevenir o início de uma guerra. Como explicado anteriormente, as capacidades de deterrence estratégica (zhanlue weishe) e de contra-ataque nuclear estão a ser fortemente melhoradas. Através do desenvolvimento das capacidades do PLARF, as autoridades chinesas procuram deter forças adversárias e impedi-las de conduzir exercícios ou missões no espaço por elas delimitado. Num relatório elaborado pelo US National Air and Space Intelligence Center, refere-se a contribuição do PLARF do ELP para o aumento das capacidades de A2/AD e de deterrence a nível regional.

A lógica base da dupla deterrence, segundo Anthony Cordesman, é que, através do desenvolvimento de um arsenal misto de mísseis convencionais e nucleares, se neutralizem potenciais adversários da RPC. O autor sublinha a importância dos mísseis de cruzeiro na estratégia A2/AD. Recorde-se que o ELP detém uma variada gama de mísseis de cruzeiro, que podem ser lançados da terra, ar ou mar, quer à superfície quer debaixo de água. Para além disso, o mesmo autor refere ainda as capacidades antissatélite do ELP, que podem impedir a recolha de informação sobre o seu território por parte de potenciais adversários.

Taiwan

A questão da reunificação de Taiwan continua a ser parte imprescindível do objetivo de Pequim, embora as preocupações relativamente a uma declaração de independência da ilha não sejam neste momento tão elevadas. De qualquer forma, a corroborar a importância que as autoridades chinesas atribuem à questão de Taiwan, estão os exercícios militares aquando da denominada Terceira Crise do Estreito de Taiwan em meados da década de 90 e a acesa discussão interna no PCCh que a precedeu. A recusa por parte do governo de Taiwan, liderado por Lee Teng-Hui, à proposta dos “Oito pontos” atrás assinalada, colocou Jiang Zemin sob forte pressão dos setores mais conservadores do PCCh. Quando Lee visita a Universidade de Cornell, nos EUA (a sua alma mater), em Maio de 1995, os líderes políticos da RPC encaram este episódio como mais um passo na direção da independência de jure de Taiwan e, segundo a sua interpretação, a confiança e audácia nas posições independentistas sofria uma variação diretamente proporcional ao apoio concedido pelos EUA. Desta forma, o Pequeno Grupo de Líderes para os Assuntos de Taiwan reuniu de emergência para discutir as políticas a adoptar perante aquilo que foi entendido como uma provocação por parte do governo da ilha. Neste grupo, estavam presentes três militares que sublinharam que a garantia da soberania e integridade territorial chinesa eram tarefas primárias do PCCh e do ELP e pediam que fosse assumida uma posição de força em relação à Ilha Formosa. Ao que tudo indica, os líderes civis que se opunham a esta proposição haviam perdido espaço de manobra e não conseguiram convencer os restantes da eficácia de uma posição mais moderada, alicerçada em sanções semi-econômicas e políticas, que parecia ter falhado após recusa da proposta dos “Oito Pontos” e da acutilância diplomática revelada por Lee Teng-Hui.

Posto isto, entre 21 e 25 de Julho de 1995 o ELP levou a cabo um exercício militar no Este do Mar da China, denominado Baleia Azul-5, durante o qual foram lançados seis mísseis balísticos (quatro DF-15 e dois DF-21) a 150 km da costa de Taiwan. Entre 12 e 25 de Agosto, uma nova sequência de exercícios militares foi efetuada pelas forças armadas da RPC, desta feita com o lançamento de mísseis a 136 km da costa da Ilha Formosa. Uma terceira série de exercícios teve início em 15 de Novembro do mesmo ano, uma semana antes do lançamento da campanha eleitoral em Taiwan. Certamente não por coincidência, estes exercícios anfíbios foram “os mais ambiciosos e complexos levados a cabo pelo ELP até então. A operação contou com cerca de 18 mil efetivos, duas centenas de lanchas de desembarque e cem outros navios. O seu planejamento foi conduzido pela CMC, juntamente com elementos dos Estados-Maiores das sete regiões militares. A 1 de Dezembro, um dia antes das eleições legislativas em Taiwan, o Zhongnanhai anunciou a realização de novos exercícios militares que ocorreriam antes das eleições presidenciais em Março de 1996, após a descoberta de “zonas mortas” nos radares de Taiwan. Este episódio provocou uma quebra de 2,5 pontos percentuais na bolsa de valores de Taiwan num espaço temporal pouco superior a uma semana. A verdade é que, após a contagem dos votos, o Kuomintang perdeu 7 lugares, o Partido Popular Democrático (PPD) ganhou apenas 4, enquanto o Novo Partido – que defendia a reunificação – passou de 7 deputados para 21. Para os exercícios de Março de 1996, a RPC ativou a rede clandestina de colaboradores que possuía em Taiwan com vista a descredibilizar tanto o KMT como o DPP, ameaçando ainda com a possibilidade de recorrer à utilização de armas nucleares caso os EUA decidissem uma intervenção militar. Dois testes nucleares subterrâneos, realizados no Xinjiang, tornaram mais credível essa possibilidade.

O General taiwanês Tang Fei afirmou que a RPC estava a mobilizar uma unidade míssil da sua base em Jiangxi para um exercício no Fujian, concluindo que os mísseis só seriam lançados no final dos exercícios militares. Na verdade, Tang Fei não estava correto e o primeiro míssil terra-terra foi lançado a 8 de Março. Este exercício representou uma escalada em relação ao anterior, visto que as duas zonas delineadas para os mísseis aterrarem ficavam a cerca de 75 km a Oeste da costa Sul e a cerca de apenas 48 km da costa Norte de Taiwan. Qualquer das zonas interceptava rotas quer marítimas, quer aéreas, sendo que as autoridades taiwanesas confirmaram que quatro mísseis caíram nas duas zonas (quatro DF-15s). Para além disto, a coincidir temporalmente com o lançamento dos referidos mísseis, o ELP agendou exercícios de tiro real em que participaram a Marinha e Força Aérea do ELP, envolvendo cerca de 10 navios e 40 aeronaves, das quais faziam parte os novos caças de combate Su-27.

Entretanto, a reação dos EUA à diplomacia coerciva de Pequim conheceu também uma escalada na sua assertividade. Se durante os exercícios realizados ao longo do Verão de 1995, os norte-americanos não enviaram os meios navais que tinham no Japão, e em 19 de Dezembro apenas ostentaram o porta-aviões nuclear Nimitz e quatro navios de escolta, em relação aos exercícios de Março as autoridades norte-americanas demonstraram a sua preocupação, enviando 14 navios de combate para as proximidades da Ilha Formosa. Dois grupos de combate foram enviados para a zona, dois porta-aviões (primeiro o Independence e o Nimitz juntar-se-ia poucos dias depois), dois destróieres, um cruzador, uma fragata e dois submarinos de ataque faziam parte da frota expedida, o que resultou de um erro de cálculo chinês em não considerar a relevância do papel desempenhado pelo Partido Republicano dos EUA nesta questão, pois àquela altura detinha o controle do parlamento americano. Apesar desta demonstração de força por parte da Marinha norte-americana, os exercícios militares chineses decorreram entre 8 e 15 de Março.

Embora a diplomacia utilizada tenha sido de carácter coercivo, a RPC não tinha o ataque a Taiwan como possibilidade, tal como Liu Huaqiu, Diretor do Gabinete de Política Externa do Conselho de Estado e Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros, havia confidenciado a Anthony Lake, um dos conselheiros de segurança nacional de Washington, durante uma visita aos EUA. Na verdade, a decisão chinesa de utilizar a força através de exercícios militares ao largo de Taiwan teve o intuito de reduzir a possibilidade de uma declaração de independência por parte das autoridades taiwanesas, clarificando que Pequim ver-se-ia obrigado a atacar a ilha caso tal sucedesse. As ameaças militares foram efetuadas para evitar um verdadeiro conflito armado no estreito de Taiwan. Este modus operandi seria repetido em 1999, quando o presidente Lee afirmou que considerava Taiwan um Estado separado da China, ao que Pequim respondeu com o anúncio da capacidade de utilizar a bomba de neutrons, a que se seguiram operações militares na costa situada vis-à-vis com a Ilha de Taiwan e ameaças de recurso à força caso fosse avançada uma declaração de independência. Em suma, seguem-se as orientações ancestrais de Sun Tzu de “vencer o inimigo sem o combater” através de uma “demonstração de dissuasão”, em que a RPC utiliza demonstrações de força para passar a mensagem às autoridades taiwanesas de que não irá tolerar uma declaração de independência.

Devido a um quadro mais favorável e a um maior pragmatismo, a presidência de Hu Jintao não conheceu conflitos de maior gravidade com Taiwan. Como referido anteriormente, a subida de Ma Ying-Jeou ao poder na Ilha Formosa veio amenizar as relações entre os dois lados do estreito, dentro de um quadro de crescente confiança econômica da RPC e de um pragmatismo notório da parte do seu presidente, plasmado nas políticas de reconciliação realizadas durante o mandato. São exemplo as subvenções econômicas na forma de acordos e políticas que beneficiam os agricultores, pescadores e investidores taiwaneses. O pragmatismo de Hu Jintao está exposto nas políticas que pretendem mudar a opinião da população da Ilha Formosa relativamente à reunificação. Contudo, promulga a Lei Antissecessão em 2005, que gerou alguma polêmica por introduzir oficialmente a possibilidade do uso da força pela RPC no caso de uma declaração da independência da Ilha de Taiwan.

Esta questão vê a sua relevância consideravelmente exponenciada quando entendemos que o conflito pode ser palco de confrontação entre EUA e RPC. Na verdade, tal confronto já existe a nível diplomático. Mas a guerra é de tal forma impactante na vida das populações, que a simples possibilidade da sua ocorrência – por cúmulo, entre as duas maiores potências mundiais – lhe atribui grau de importância máxima. Neste sentido, urge averiguar como se prepara a RPC para a eventualidade.

Pequim reconhece a superioridade tecnológica e militar norte-americana, admitindo que, no caso da irrupção de um conflito, não será capaz de defender plenamente as suas valências de combate aéreo, e que essa superioridade aérea norte-americana tornaria hercúlea a tarefa de proteger o espaço aéreo chinês. Igualmente, a marinha chinesa não está no mesmo patamar da americana e esta, pela sua capacidade tecnológica e de operações conjuntas, teria, à partida, alguma facilidade em levar a melhor sobre a Marinha do ELP. Contudo, este cenário tem sido alvo de estudo por parte do ELP e a RPC parece ter delineado alguns planos que podem contrariar os EUA, através do desenvolvimento de capacidades assimétricas. O Tenente-Coronel Alexandre Carriço escrevia, em 2005, que “o cerne da questão gira em torno do papel das armas nucleares no emprego convencional da força”. Esclarecia que “o reconhecimento da superioridade tecnológica americana tem impelido os analistas militares chineses a procurarem o desenvolvimento de capacidades assimétricas como meio de explorarem potenciais vulnerabilidades no sistema de informação das forças militares de Washington”. Trata-se de procurar a exploração das vulnerabilidades do adversário no sentido da consecução de objetivos limitados. A degradação das capacidades de informação do adversário, a guerra eletrônica através de vírus, ou “soft destruction” (ruan cuihui), têm merecido a atenção dos militares chineses enquanto meio para atingir essa assimetria. Os investigadores militares do ELP chegaram também à conclusão de que as capacidades de mobilidade e camuflagem serão de grande importância no caso de um eventual conflito, devido à necessidade de esconder os silos onde se encontram os mísseis apontados a Taiwan.

A RPC tem procurado alcançar uma situação militar vantajosa neste teatro de operações em particular, e a verdade é que, as atuais capacidades militares da China continental são claramente superiores àquelas que possui a Ilha Formosa. Uma das estratégias de Pequim foi alcançar superioridade esmagadora em sistemas balísticos convencionais de curto alcance, arsenal que não necessita de tecnologia sofisticada, mas que dota as Forças Armadas chinesas de uma capacidade credível de infligir ataques ruinosos para a sociedade taiwanesa. Em 2005, Pequim havia desenvolvido cerca de 750 mísseis deste tipo. Notícias de que a RPC ultrapassou os EUA no número de submarinos em 2015 têm também um significado importante para esta matéria, representando um fortalecer claro das capacidades de antiacesso de Pequim neste teatro de operações. Neste campo, a superioridade numérica tem valor assinalável. Embora os EUA tenham submarinos mais avançados do que a RPC – que ainda possui poucos submarinos nucleares – a superioridade numérica na questão de Taiwan pode fazer a diferença, há uma série de estratégias capazes de retirar proveito desta vantagem. Já em 2006, Robert Ross concluía que as capacidades navais e aéreas desenvolvidas, combinadas com uma vasta gama de mísseis convencionais colocados ao longo da costa chinesa vis-à-vis a ilha de Taiwan, eram suficientes para lançar ataques devastadores sobre a Formosa, sem que a força militar norte-americana o conseguisse impedir.

Existe ainda outra arma que os chineses desenvolveram e que pode influenciar o rumo dos acontecimentos no estreito. O carrier killer é um míssil que Pequim clama estar apto a destruir um porta-aviões norte-americano. De seu nome original DongFeng-21, a Marinha norte-americana afirmava em 2009 que se funcionar como é esperado, assinala a primeira vez que um míssil balístico é desenvolvido para atacar embarcações no mar com sucesso. Os navios de hoje em dia não possuem, ainda, capacidades de defesa contra um míssil balístico manobrável. A posse deste míssil é mais uma forma de dissuasão que a RPC encontrou para impedir a declaração de independência de Taiwan. As formas de dissuasão têm que ser convincentes, devem ameaçar ou infligir punições e não trocar ameaças que descambem num suicídio nuclear mútuo e quando a RPC ameaça Taiwan com o uso da força, caso a Ilha avance com uma declaração de independência, esta ameaça deve ter em conta um potencial apoio dos EUA a Taiwan. Como afirma Li Chien-Pin, a melhor moeda de troca da RPC para alcançar um acordo de paz é a promessa de não utilizar a força em troca da promessa da não independência de Taiwan. Porém, para que esta moeda de troca tenha valor, a possibilidade da utilização da força deve ser suficientemente real e atemorizante, condicionando as autoridades taiwanesas a preferir a outra hipótese. A verdade é que este entrelaçar do aumento das capacidades militares chinesas no teatro de operações de Taiwan com o estreitamento das relações políticas e econômicas entre os dois lados do estreito, parece ter fortalecido a possibilidade de manter o status quo.

Desenvolvimento Econômico

O Desenvolvimento Econômico assume-se um objetivo de grande importância para a RPC, pois é fator importante no aumento de Poder Nacional Abrangente (PNA )de um país, sem o qual é impossível a China conseguir o seu objetivo de revitalização nacional. Note-se que o desenvolvimento econômico alimenta um leque de fatores: o estatuto internacional, a capacidade de influência, as capacidades de soft power, o acesso a recursos variados, o nível de vida da população do país, são aspectos que sofrem alavancagem com o aumento do poder econômico. As autoridades chinesas afirmam que as forças armadas têm, como função, tomar parte no desenvolvimento nacional e servir a situação de desenvolvimento e reforma que o país atravessa. No White Paper de 2013 é, ainda, referido que dão significantes contributos para as economias locais, através de um apoio local ativo aos projetos de infraestruturas. O desenvolvimento científico e a educação são também área que merecem a atenção das forças armadas chinesas, tendo existido um forte investimento em programas de investigação tecnológica e no apoio à construção de escolas.

A RPC é, presentemente, um dos maiores importadores mundiais de commodities. Neste subcapítulo devemos notar a importância que as SLOC (Linhas de Comunicações Marítimas) detêm para o desenvolvimento econômico da China. Para além disto, há que atentar na interligação entre os três objetivos identificados. Repare-se que a estabilidade das fronteiras tem um valor assaz relevante para o desenvolvimento econômico chinês, pois um ambiente desfavorável – com disputas territoriais acesas, o risco de separatismo – não permitiria que as autoridades chinesas se concentrassem no desenvolvimento econômico do país, vetor determinante na fase que a RPC atravessa. Assim, Pequim manifesta fortes pretensões contributivas para um ambiente exterior estável, beneficiário do seu fortalecimento econômico.

Neste aspecto, repare-se na participação do vetor militar no desenvolvimento econômico no quadro das organizações multilaterais. No caso da ASEAN, existe uma forte preocupação em fomentar a cooperação para monitorizar mais eficientemente o Estreito de Malaca, de forma a combater o tráfico de armamento e de droga, e a proteger as embarcações que atravessam esta importante linha de comunicação. É com este aprofundar da coordenação com outras forças armadas que, no âmbito das relações com a ASEAN, o ELP participa na proteção de embarcações que atravessam o estreito de Malaca. Sabendo que cerca de 90% do comércio da RPC com o exterior é feito por via marítima, e que a grande maioria das importações de recursos energéticos do continente africano atravessa o oceano Índico até à RPC, podemos aferir que esta é uma SLOC relevante para a economia chinesa.

Em relação à SCO, observamos que um dos objetivos da organização é o de manter as fronteiras dos seus Estados-membros seguras, principalmente contra ameaças terroristas, separatistas e extremistas. Por um lado, o vector militar chinês participa, no âmbito da SCO, na proteção da fronteira chinesa, procurando manter a estabilidade fronteiriça para permitir que as autoridades possam concentrar os seus recursos no desenvolvimento econômico do país. Por outro lado, a SCO estabelece condições que promovem com sucesso o desenvolvimento das relações econômicas bilaterais, com vista a uma integração a longo-prazo. Foram celebrados acordos relevantes relativamente ao transporte e venda de recursos energéticos para a China. Podemos apontar casos paradigmáticos como o oleoduto Cazaquistão-China, completo desde 2009, com cerca 2.228 km de comprimento e que transportava 14 milhões de toneladas de petróleo por ano em 2013, ou o gasoduto Ásia Central-China, que possui cerca de 6.800 km de comprimento, atravessando Uzbequistão, parte do Cazaquistão até ao Xinjiang, e que tem capacidade anual máxima de 40 bilhões de metros cúbicos. A questão é que a China, impulsionada pelo seu músculo econômico, começa a utilizar a organização, criada com intuitos de segurança, para um tipo de cooperação mais alargada, passando a englobar assuntos que dizem respeito, precisamente, à política energética. E, desta forma, uma organização inicialmente criada com o intuito de resolver problemas de segurança, como o terrorismo, o separatismo e o fanatismo religioso, passa também a deter um papel importante no quadro da segurança energética da RPC.

Segurança Energética e das SLOC

Pequim afirma que é uma estratégia de desenvolvimento nacional essencial tornar a China uma potência marítima e proteger os mares e os oceanos, pelo imenso espaço e abundantes recursos que a China pode aproveitar. Defendo que as suas forças armadas têm a tarefa de salvaguardar os direitos chineses além-mar, bem como de reforçar a defesa das pescas chinesas e da exploração de recursos energéticos no oceano. Como atrás foi mencionado, a RPC é, desde Abril de 2015, o maior importador mundial de petróleo, envidando esforços para diversificar as rotas de transporte mas sendo, ainda assim, compelida a utilizar SLOCs que não garantem os padrões de segurança desejados. Estão neste caso os estreitos de Malaca, Sunda, Ormuz ou Bab El-Mandeb, com problemas sérios de pirataria, sequestro e pilhagem de embarcações. Contudo, funcionam como via para boa parte das suas importações. A instabilidade política é também uma questão preocupante para a RPC e que ocorre nos países exportadores de recursos energéticos, como a Venezuela ou o Sudão do Sul.

Esta insegurança nas rotas de transporte marítimo do comércio chinês, seja nos recursos energéticos ou mercadorias, faz com que as autoridades chinesas procurem reforçar a segurança marítima enquanto, em simultâneo, procuram rotas alternativas que apresentem riscos menos elevados. No caso específico dos recursos energéticos, nota-se uma crescente preocupação em reforçar o comércio com os países da Ásia Central, que são fontes menos expostas aos perigos das rotas marítimas.

Investigadores militares da Marinha do ELP advogam que, para resolver a problemática da falta de segurança das rotas marítimas, a RPC deve, primeiramente, explorar os recursos existentes no seu território marítimo. Para que tal seja possível, o território marítimo chinês e a sua zona econômica exclusiva devem ser protegidos. Mediante o que identificamos sobre as disputas territoriais no Mar do Sul da China, constata-se que esta concepção é passível de gerar conflitos. Pela mesma razão, analistas da Marinha do ELP acreditam que Pequim deve continuar a modernização e construção de um poderio naval que permita que a RPC consiga proteger a sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e explorar os seus recursos marítimos. A comprovar esta convicção estão as afirmações do Professor Tang Fuquan, da Academia Naval de Dalian, em 2006, que defende que a Marinha do ELP não deve focar-se num possível conflito com outra Marinha, mas sim esforçar-se por defender a ZEE chinesa, acrescentando que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar pode dar oportunidade a que os conflitos relativos aos interesses marítimos se tornem violentos.

Desta forma, a construção de instalações militares em ilhas no Mar do Sul da China, referida no subcapítulo anterior, é uma forma de a RPC garantir o seu controle sobre determinadas zonas de conflito. Para além disto, atente-se nos vários pequenos confrontos entre embarcações chinesas e de outros países do Sueste Asiático – principalmente Filipinas e Vietnã – em disputa nas zonas de grande potencial energético, o que leva à procura de maior projeção de força tendo em vista a superiorização militar na zona.

Podemos observar o modus operandi chinês através do sucedido no Verão de 2014 e repetido no Verão de 2015, quando Pequim instalou uma plataforma petrolífera numa zona em que a ZEE chinesa e vietnamita se intersectam e sobrepõem. Alvo de críticas por invadirem a ZEE vietnamita, as autoridades chinesas começaram a perfuração de poços de petróleo pela plataforma Haiyang Shiyou 981. Em 2014, a plataforma foi acompanhada por um número considerável de embarcações, nas quais se contavam vários navios rebocadores, embarcações pesqueiras e navios da guarda costeira. Este episódio foi criticado pelas autoridades vietnamitas que enviaram também embarcações de pesca e da guarda costeira para a zona onde a RPC havia instalado a plataforma. Na sequência destas ações, ocorreram pequenos confrontos, como colisão entre embarcações que ditaram o naufrágio de uma embarcação pesqueira vietnamita.

O que é interessante e demonstra a crescente assertividade chinesa nesta matéria, é o fato de Pequim ter reincidido, voltando a movimentar a plataforma petrolífera para um local onde as ZEE se sobrepõem: após dois meses de impasse, na Primavera/Verão do ano de 2014, a RPC acabaria por mover a plataforma para um local afastado. Entretanto, turistas e emigrantes chineses no Vietnã começavam a sofrer com a onda anti-China que o episódio levantou no país do Sueste Asiático. Menos de um ano depois da ocorrência, apontada por alguns como causa do maior afastamento entre os dois regimes desde a guerra sino-vietnamita nos anos 70, a RPC volta a colocar a mesma plataforma em ação a 167 km da costa do Vietnã, meio de demonstrar que não teme a resposta do Vietnã, mas também que esta matéria é de tal modo importante, que o País do Meio arrisca um acentuar da tensão nas relações de vizinhança. Contudo, existiram outras formas de conseguir espaço para perfuração de poços de petróleo, como é o caso da compra dos direitos de exploração de 2.5 milhares de hectares no Mar do Sul da China pela Brightoil e à norte-americana Harvest Natural Resources. No entanto, interessa-nos esclarecer como, no plano militar chinês, é jogado este jogo.

Para além da procura por fontes de recursos naturais que diminuam a dependência chinesa das importações, é fulcral que estas sejam protegidas, até porque, por muitos recursos de que a RPC consiga os direitos de exploração, a sua necessidade é de tal ordem que acusará sempre elevado volume de importações. Sabendo que muitas das importações chinesas continuam a ser conduzidas por via marítima, os estreitos de Malaca, Sunda e Lombok são três das principais SLOC por onde as importações energéticas com destino à RPC fazem a sua viagem. Estes locais constituem pontos vulneráveis para este tipo de importação, pela insegurança e por serem zonas de grande agitação político-militar. Deste modo, a expansão das capacidades chinesas de projeção de força é, em boa parte, consequência da necessidade de Pequim proteger as suas importações. Aliás, segundo o white paper de 2015, a China deve desenvolver uma força marítima moderna, capaz de defender os seus interesses de desenvolvimento e segurança nacional e proteger a segurança estratégica das SLOC e os interesses chineses além-mar.

O Almirante Chefe da Marinha do ELP, Wu Shengli, afirmou, em Abril de 2009, que a RPC procedia à construção de um sistema de defesa marítimo para proteger a segurança marítima e o seu desenvolvimento econômico. A verdade é que a RPC desenvolveu seis novas classes de destróieres e quatro novas classes de submarinos durante as últimas duas décadas, assim como colocou dois porta-aviões em atividade. Ter um porta-aviões é uma compreensível projeção de força se pensarmos no alcance de tal instrumento enquanto pivot. É indubitável que a posse de um porta-aviões aumenta a capacidade dissuasora sobre terceiros. Repare-se que, no Verão de 2015, as autoridades chinesas anunciaram a construção de uma doca para porta-aviões no Mar do Sul da China, que é neste momento a maior do mundo. A escolha da sua localização denota a importância estratégica da zona para a RPC. Este é um fato que vai permitir à Marinha do ELP agilizar a eficiência das patrulhas nas SLOC, por onde transitam os recursos energéticos.

Na sequência do processo, várias embarcações consideradas obsoletas têm sido substituídas nos últimos anos por outras bastante mais modernas, especialmente a nível de navios de combate. A contrastar com a antiga frota, a Marinha do ELP possui neste momento fragatas e destróieres capazes de executar várias tarefas. Parecendo mais diretamente relacionados com a proteção das importações de recursos energéticos, os navios-patrulha foram modernizados, tendo as autoridades chinesas substituído boa parte da frota antiga pelo novo modelo Houbei, que pode carregar até oito mísseis antinavio e cujo casco, desenhado para perfurar as ondas, permite atingir velocidades consideráveis. Tal conjunto de fatores aumenta a capacidade chinesa de proteção das SLOC e, por consequência, das suas importações e exportações. O fato de a capacidade antissubmarino não ter sido alvo da mesma atenção por parte das autoridades chinesas, pode significar que Pequim dá prioridade ao equipamento que possa ser utilizado na proteção das importações. Embora não existam fontes chinesas explicitando como se reparte o orçamento pelos vários serviços, a Marinha do ELP, mesmo sendo por vezes apontada como a área que recebe a mais pequena fatia - entre Exército, Força Aérea e Marinha -, beneficiou de forte investimento.

O White Paper emitido pelo Ministério da Defesa chinês, no ano de 2015, traz novos elementos que os documentos anteriores não possuíam, embora tenham lançado as bases. Assim, um dos principais focos do White Paper de 2015 é a defesa marítima, adicionando a defesa dos interesses chineses além-mar como uma tarefa estratégica. Para além de esta evolução significar que a Marinha do ELP passará de uma estratégia de defesa da costa para uma de defesa oceânica, consideramos que significa também que a RPC poderá vir a reforçar o seu controle no Mar do Sul da China, ou enviar esforços nesse sentido. Aliás, como é referido no White Paper de 2013, explorar, proteger e utilizar os mares e oceanos e fazer da China uma potência marítima, é uma estratégia de desenvolvimento nacional essencial. O que aqui foi descrito parece apontar nessa direção: desde a construção da doca para porta-aviões até aos exercícios militares de grandes dimensões levados a cabo na região, esta procura pelo controle da zona é, simultaneamente, uma procura pelo controle das SLOC, fontes de recursos energéticos e o consequente reforço de influência e estatuto.

A segurança marítima e o fortalecimento das capacidades de segurança marítima, asseguram que menos embarcações são abordadas por piratas aquando da sua travessia. Ao conseguir aprofundar a cooperação militar com a ASEAN no combate à pirataria, a RPC garante também que as forças armadas de países com os quais mantém litígios não atacarão nem avançarão com provocações contra embarcações comerciais chinesas ou que transportam interesses chineses. Por outro lado, o melhoramento das capacidades da Marinha do ELP reforça as capacidades de proteção dos interesses econômicos chineses em território marítimo da RPC. Visto que muito do território marítimo que Pequim reclama como seu é disputado por outros países, o poder militar naval pode demover tentativas de outras potências de afastar a presença chinesa ou de proceder à extração de recursos nessas áreas em disputa.

As Missões no Golfo de Áden

O Golfo de Áden, entre a Somália e o Iêmen, é parte integrante da via marítima utilizada para fazer chegar os produtos chineses à Europa. Note-se que a RPC é o principal exportador para a UE, segundo os quais em 2012 a RPC representava 20% do total de importações da UE. Além de que, e como já anteriormente referimos a maioria das importações energéticas da China são feitas por via marítima, sendo África uma fonte de abastecimento cada vez mais importante para Pequim, constatamos que boa parte dos recursos energéticos africanos com destino ao País do Meio atravessam o oceano Índico em que cerca de 40% das embarcações são chinesas. Paralelamente, devido aos numerosos recursos das águas em questão, é no corno de África que operam muitos navios chineses de pesca de alto mar. No ano de 2008, estima-se que um quinto das 1.265 embarcações (chinesas e ao serviço da China) foram atacadas por piratas somalis. Este tipo de informação é importante quando analisamos as missões chinesas no Golfo de Áden, até porque é precisamente no ano de 2008 que elas se iniciam.

Em primeiro lugar, vejamos que força foi empregue pela Marinha do ELP desde que a RPC decidiu iniciar a missão antipirataria no corno de África em Dezembro de 2008. No dia 26 do referido mês, dois destróieres saíram de Sanya com intuito de combater a pirataria no Golfo de Áden. O destróier Wuhan, da classe Luyang, acompanhado pelo destróier Haikou, da classe Luyang-II. Com eles seguia um navio de abastecimento. Três meses depois, os dois destróieres eram substituídos por outras duas embarcações militares, desta feita uma fragata – Huangshan, da classe Jiangkai II – e um outro destróier – Shenzhen, da classe Luhai. 112 dias depois, os três navios em missão foram substituídos por duas fragatas e um novo navio de abastecimento, sendo que as duas fragatas que constituíam a terceira frota no Golfo de Áden eram a Zhoushan e a Xuzhou, ambas da classe Jiangkai-II. Três meses depois, em Março de 2010, duas fragatas da classe Jiangkai I – Ma’anshan e Wenzhou – substituíram as anteriores. Fazer a cronologia de todas as frotas destacadas para as referidas missões seria tarefa que necessitaria uma análise bastante pormenorizada. Portanto, note-se apenas que, em Abril de 2015, a RPC enviou a 20ª frota para o corno de África, constituída pelo destróier Ji’nan da classe Luyang-II e pela fragata Yiyang da classe Jiangkai-II, e equipada com 2 helicópteros integrados nos navios. Serve esta descrição para explanar como as autoridades chinesas selecionaram alguns dos mais modernos e avançados navios construídos na China, para além de experientes e distintos oficiais, na realização desta missão. Estas medidas corroboram a importância atribuída por Pequim à operação, mas sugerem igualmente que a Marinha do ELP vê a tarefa como uma oportunidade para testar os novos sistema e obter experiência em ambientes de navegação moderna.

Andrew S. Erickson defende que os motivos oficiais avançados pelas autoridades chinesas para que a RPC se tenha juntado à luta contra a pirataria nas águas do Golfo de Áden não explicam completamente esta movimentação. Não obstante, os argumentos oficiais concordam com a ideia de que a missão chinesa no corno de África constitui uma parcela das políticas que visam assegurar à comunidade internacional que a RPC é um Estado responsável e o seu crescimento não representa uma ameaça. Liu Jianchao, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da RPC, afirmou que Pequim enviaria navios no intuito de combater uma séria ameaça ao comércio e segurança nos oceanos. Em simultâneo, oficiais do ELP asseguravam que esta ação não violava a política não-intervencionista da RPC. Para além da proteção às embarcações chinesas, a missão tinha ainda em vista proteger barcos de organizações internacionais como os do Programa de Alimentação Mundial da ONU, e acabou por proteger embarcações não-chinesas que lançaram pedidos de auxílio.

Tanto o governo chinês como a Marinha do ELP frisaram que a missão se restringia às águas territoriais da Somália. Consideravam que o seu objetivo era a detenção de piratas que atacassem as embarcações e não a procura ativa de piratas em águas territoriais de um país estrangeiro. O comandante da Marinha, Wu Shengli, afirmou que esta era a primeira vez que a RPC protegia os seus interesses estratégicos no exterior com força militar. Erickson concorda que toda a situação representou uma oportunidade para que se procedesse a uma mudança de paradigma: a RPC era o único membro permanente do CS da ONU que não havia ainda participado em operações internacionais de segurança marítima, surgindo as missões antipirataria como quadro ideal para começar a agir como Poder Responsável. Este é, segundo a minha visão, o cenário que confere a Pequim os ingredientes ideais para demonstrar a benignidade que envolve o fortalecimento das forças armadas chinesas: um Estado responsável que pretende dar um upgrade às suas forças armadas, de forma a poder auxiliar outros países e organizações de assistência humanitária em questões transversalmente vistas como nocivas para a população mundial, como é o caso da pirataria. Prova o seu respeito pela soberania de um Estado terceiro demonstrando que, ao contrário dos EUA, a RPC não pretende uma ingerência nos assuntos internos de outros países e muito menos intervir militarmente no seu território, ou seja, é uma oportunidade e não uma ameaça. Na verdade, esta ideia fica vincada pela recusa da missão chinesa em extravasar para o território terrestre da Somália, muito embora essa possibilidade tenha sido unanimemente ratificada pelo CS da ONU e tenham existido, por parte do embaixador da Somália na China, pedidos específicos para a participação do ELP neste tipo de incursões.

Não devemos ignorar o que foi referido anteriormente em relação à proteção responsável (responsible protection) que a RPC incorporou na sua retórica devido a um processo de discussão e estudo que os chineses desenvolveram sobre a matéria. A mudança de paradigma que observamos na missão chinesa de antipirataria no Golfo de Áden parece fazer parte do mesmo processo: a RPC discorda do Right to Protect apregoado pelos EUA e plasmado nas intervenções militares norte-americanas e da OTAN em países como o Iraque ou Líbia. Porém, Pequim é receptivo a participar em intervenções militares, caso as considere responsáveis. As autoridades chinesas debateram qual o papel que poderiam desempenhar as operações militares que não envolvam guerras, chegando à conclusão que podiam incrementar o soft power chinês, enquanto Poder responsável na manutenção da ordem marítima global. Aquando do tsunami no Sueste Asiático em 2004, o ELP foi incapaz de prestar auxílio às regiões afetadas pela catástrofe, fato notado em todo o mundo, especialmente no continente asiático. Terá sido esta experiência que levou os estrategistas chineses a avaliar o papel deste tipo de operações militares como potencialmente significativas para o objetivo da RPC de construir uma imagem de si própria como Poder Responsável.

Contudo, somos levados a concordar com Andrew Erickson, quando advoga que existiram mais motivos para a RPC iniciar a sua missão antipirataria no corno de África. Relembrando a importância desta região para as trocas comerciais chinesas, devemos ter em conta outros fatores responsáveis pela entrada da Marinha do ELP na costa da Somália. Ye Hailin, investigador do Instituto de Estudos da Ásia-Pacífico da Academia Chinesa de Ciências Sociais, assume que, embora a RPC não fosse obrigada a responder ao crescente número de ataques pirata no Golfo de Áden, é um fato que muitos dos petroleiros e navios de mercadorias chineses passam por ali; logo, Pequim passou a ser corresponsável na resolução do problema.

A verdade é que aumentava o número de embarcações chinesas que tentavam evitar o Golfo de Áden, obrigadas a contornar o continente africano pelo Cabo da Boa Esperança. Este percurso aumentava consideravelmente a duração da viagem, comportando maiores encargos econômicos e o inevitável atraso nas entregas. Pequim não podia arriscar que este processo se tornasse habitual, temendo que contratos fossem quebrados por falta de pontualidade nas entregas e que, consequentemente, a China começasse a enfraquecer a sua quota de mercado global. Por outro lado, o problema começou a chamar a atenção da população chinesa que criticava a aparente incapacidade das autoridades de proteger as embarcações nacionais. Erickson cita Huang Li, que publicou uma obra dedicada a este assunto, quando afirma, “para conseguir uma entrada pacífica no Oceano Índico, foi necessária uma causa legítima, de forma a não suscitar críticas”. Ou seja, Huang Li vê ainda outro fator que levou a RPC a preparar a missão antipirataria na costa oriental africana: a presença no Oceano Índico, a expansão da influência chinesa para águas distantes. Note-se que a expansão militar chinesa para o mar aberto estava prevista nas novas missões históricas delineadas por Hu Jintao, retórica que incluía o combate ao terrorismo e outras ameaças não tradicionais, bem como a defesa dos interesses marítimos chineses como as suas importações de matérias-primas e rotas comerciais, uma parte fundamental nessa oportunidade está agora sendo visto, com os ataques dos houthis em navios comerciais no Mar Vermelho, além do Project 141, mencionado nos documentos vazados do Pentágono onde se atribui uma expansão chinesa de bases navais ao redor do mundo, se concentrando na Rota da Seda Marítima, ligando China até a África.

Andrew Erickson afirma que as operações antipirataria impactaram a diplomacia naval, na medida em que a interação com marinhas de outros países é, hoje, rotina no Golfo de Áden. Atente-se nas trocas bilaterais com a Marinha de Singapura em 2010 e com a OTAN em 2013. É oportuno e relevante para Pequim a construção da imagem de Estado responsável, reputação que pode tranquilizar aqueles que apregoam a ideia da ameaça chinesa. Perante a modernização do ELP e a crescente aposta na vertente militar, provar que a RPC vai manter essa postura de responsabilidade, parece ser a melhor forma de garantir que a comunidade internacional não propaga ainda mais a teoria de que existe uma ameaça chinesa. Na verdade, a participação do ELP em operações de peacekeeping e cooperação militar, como a do Golfo de Áden, pode ser uma via prolífica para a consecução desse objetivo. Trata-se do combate ao crime transnacional e a grupos terroristas ou extremistas, cuja integração do ELP pode demonstrar à comunidade internacional que a modernização militar da RPC pode ser positiva para todos os países. Desta forma, contraria-se a ideia de ameaça chinesa, mostrando que a RPC está preparada para agir como Poder Responsável.

Aqui reside a explicação para a inclusão das três dimensões neste macro objetivo. Contudo, é impossível não ligar a missão no Golfo de Áden ao desenvolvimento económico chinês. Como vimos, a RPC tem interesses econômicos colocados em cheque pelo problema da pirataria no corno de África, fator que contribui para a sua decisão de integrar missões desta natureza. Pequim colocou o problema como uma questão de segurança internacional e de assistência humanitária, mas não negou que o objetivo principal era a proteção das embarcações chinesas e, inclusivamente, assumiu que a insegurança na região colocara em risco os interesses da RPC. A intervenção chinesa no Golfo de Áden cumpre dois dos macro objetivos identificados. Embora a argumentação oficial tenha incidido mais diretamente sobre a questão humanitária do problema – o que nos norteia para a imagem de Estado responsável –, a problemática econômica está demasiado clara para deixar de ser considerada. E não foi desmentida pelas autoridades e acadêmicos chineses.

O Peace Ark

O Daishandao, mais conhecido por Peace Ark, é um Navio-Hospital inaugurado em 2008 e é o primeiro navio deste tipo construído pela indústria chinesa, com capacidade para 300 camas. A decisão de Pequim de construir um navio com funções de hospital, nasceu da admiração chinesa aquando do auxílio prestado pelo Navio-Hospital norte-americano USNS Mercy às vítimas do tsunami de 2004. Este navio realizou várias atividades um pouco por todo o globo, naquilo que Pequim denominou “Missão Harmonia”. Esta missão tem o intuito de prestar assistência médica no estrangeiro e teve início em 2010 quando o Peace Ark foi enviado em missão para o Golfo de Áden com uma tripulação que incluía 100 médicos, tendo visitado e prestado assistência médica em países como o Djibouti, Quênia, Seychelles e também no Bangladesh, embora este país não faça parte da costa oriental africana. A Missão Harmonia de 2011 teve a América Central como alvo, tendo o Peace Ark prestado assistência em vários países das Caraíbas – Cuba, Jamaica, Trindade e Tobago e Costa Rica. Em 2013 o Navio-Hospital voltaria a operar no Oceano Índico, tendo efetuado paragens na Índia, Brunei, Maldivas e Paquistão.

Englobado na perspectiva chinesa de operações militares que não envolvem guerras, o Peace Ark permite à RPC e à Marinha do ELP, um acesso a águas distantes, especialmente no Oceano Índico, de uma forma que não é considerada ameaça, como defende Roy Kamphausen. Nenhum Estado acusará a China de segundas intenções quando o que está em causa é assistência médica em países considerados em vias de desenvolvimento. Desta forma, Pequim utiliza as suas capacidades militares na construção de um perfil de Estado responsável procurando tranquilizar a comunidade internacional e, ao mesmo tempo, consegue que a sua marinha obtenha experiência na navegação em águas distantes. Objetivamente, este desempenho do ELP integra a pretensão de Pequim de construir uma imagem positiva  da RPC, uma imagem de Poder Responsável que utiliza as suas forças armadas de forma altruísta, de modo a beneficiar outros países.

Missões de Peacekeeping

A RPC afirma que o seu desenvolvimento e segurança estão relacionados com a paz e a estabilidade no mundo. Segundo o White Paper de 2013, é no sentido de fomentar a paz mundial e a estabilidade regional que a China vai continuar a aumentar a cooperação com forças armadas de outros países, bem como participar em missões de segurança internacional. Pequim sublinha a participação do ELP em missões de manutenção da paz no âmbito da ONU, defendendo que as forças armadas chinesas respeitam estritamente todas as normas e leis dos Estados anfitriões, bem como os hábitos e religiões locais, ganhando, assim, o respeito de todas as populações com que contata.

As autoridades chinesas são peremptórias na recusa em constituir alianças com outros Estados ou fazer parte de blocos militares como a OTAN. Pequim critica esta organização, especialmente os EUA, pela manutenção de uma mentalidade de Guerra Fria. Em consequência, procura um modus operandi diferenciado, de forma a incluir as suas forças armadas em atividades militares. A este aspecto realce-se que a RPC sempre considerou as Nações Unidas como um órgão com legitimidade para tomar decisões relativas à segurança internacional, sendo a partir deste organização multilateral que Pequim tem muitas vezes procurado participar em exercícios e missões a nível militar.

A participação do país em missões de peacekeeping da ONU, juntamente com assistência em catástrofes, missões antipirataria no golfo de Áden, contra terrorismo, apoio médico militar regional e segurança doméstica para grandes eventos, são atividades militares descritas pela EPL cujo foco não é a guerra. A participação nesses tipos de operações não deixa de estar subjacente ao interesse da RPC de mostrar que é um Estado responsável. Este tipo de missões sob a bandeira das Nações Unidas serve também o interesse em refazer qualitativamente a imagem que o mundo tem do País do Meio.

A RPC tem vindo a aumentar o envio de tropas para as missões de manutenção a paz da ONU, num tempo de sobrecarga na capacidade operacional da organização, sendo que as autoridades chinesas são bastante específicas no tipo de tropas que enviam: forças policiais individuais e oficiais de ligação, ao mesmo tempo que unidades de polícia constituída, habituadas a trabalhar em equipe; e ainda, tropas especializadas em Informação, Vigilância e Reconhecimento, neutralização de materiais explosivos ou saúde que colmataram necessidades comuns e urgentes nos exércitos de países africanos.

É com Jiang Zemin que a RPC inicia a sua participação em missões de peacekeeping da ONU. Colaboração que começa por ser cautelosa, testando o envio de unidades de engenharia ou de observadores, tentando mobilizar escassa força de combate. Em 1989, a RPC incluiu 20 observadores militares chineses no Grupo de Assistência das Nações Unidas para o Período de Transição e em 1992 enviou 400 engenheiros e 49 observadores militares para a Autoridade provisória das Nações Unidas no Camboja. Em 1997 dá-se o salto qualitativo e quantitativo. Com o novo conceito de segurança, a China participa em pequenos exercícios multilaterais que ocorrem sobretudo na Ásia e são essencialmente navais. Desta forma, o ELP treinava manobras e exercícios militares ao mesmo tempo que reabilitava a sua imagem. Recorde-se que, com o Presidente Jiang Zemin, a modernização militar ganha novo ímpeto e que, se a aquisição de experiência através da prática é um aspecto importante para a consecução de um verdadeiro upgrade no âmbito militar, pode igualmente gerar controvérsias indesejáveis. Ora, sob a bandeira das Nações Unidas, os militares chineses obtêm experiência no terreno, sem suscitar discórdia.

Em 2005, Hu Jintao frisou que em regiões nas quais emergissem conflitos, assegurar o Estado de Direito e da Justiça devia passar a ser parte integrante do esforço geral para alcançar a paz e a estabilidade, protegendo assim interesses dúplices, os das populações locais e os interesses da estabilidade social. Isto no seguimento de uma declaração segundo a qual a China apoiava uma estratégia abrangente em que estivessem patentes a prevenção, restauração e manutenção da paz e a reconstrução pós-conflito. Esta é uma evolução no entendimento chinês do conceito de soberania. Repare-se como a concepção de inviolabilidade da soberania dos Estados sofre uma alteração em favor das intervenções externas. Certamente, a concepção chinesa não passou a ser similar à norte-americana: a China aceita que, em situações específicas, o direito de proteger pode-se sobrepor ao direito de um Estado à sua soberania. Isto acabou por levar a que Pequim seja hoje, no âmbito da ONU, responsável por um debate que divide os apologistas do direito a proteger, e os apologistas da responsible protection. Esta mudança foi fruto de um forte debate interno durante os anos 90, em que acadêmicos, políticos e advogados reavaliaram a importância que conceitos como soberania, peacekeeping e recursos humanos detinham junto da comunidade internacional. Constatou-se que seria benéfico para a imagem da RPC flexibilizar o seu modus operandi e a sua retórica em relação a estas questões. Na publicação Zhongguo Faxue (Estudos Legais da China), o número de artigos que abordam as obrigações do Estado para com os cidadãos aumentou; a China admite, pela primeira vez, a ingerência da comunidade internacional na política interna, caso um Estado falhe as suas responsabilidades básicas para com os cidadãos.

Posto isto, no ano de 2002, a RPC participa no Sistema de Standby Arrangement das Nações Unidas. Em 90 dias, a China reservou um batalhão de 525 engenheiros, uma unidade de 25 médicos e companhias de transporte constituídas por 160 pessoas, todas elas prontas para entrarem ao serviço com outras forças das Nações Unidas. A verdade é que o profissionalismo dos oficiais do ELP tem sido elogiado dentro da ONU, o que fez com que, em 2007, um oficial chinês tenha sido, pela primeira vez, apontado para ocupar um quadro superior. Em 2011, aproximadamente três quartos das atividades de manutenção da paz em que militares chineses participavam estavam localizadas no continente africano, atuando com eficácia na reconstrução pós-conflito em países como a Libéria, Sudão do Sul, República Democrática do Congo e Costa do Marfim. Contudo, a participação da RPC em missões da ONU em África e aquilo que é o apoio direto chinês aos países africanos – referido anteriormente – não deve ser confundido. Note-se que as relações bilaterais entre China e alguns Estados africanos têm frustrado oficiais das Nações Unidas devido à impossibilidade de acesso a informações relativas às mesmas. Neste âmbito, ressalvamos o esforço de Pequim para encontrar um equilíbrio entre os dois vetores da sua atuação: por um lado, a valorização do profissionalismo das suas unidades nas missões peacekeeping da ONU e a mostra da sua benevolência na construção de estradas, melhoramento de infraestruturas e assistência médica; por outro, a desconfiança criada pelas relações empresariais e estatais, pela exploração e compra de recursos energéticos no continente africano e pela migração de mão-de-obra chinesa para os países com os quais a RPC mantém este tipo de relação.

De acordo com os dados fornecidos pelas Nações Unidas, a RPC contava, em Agosto de 2015, com um total de 3 079 peacekeepers da ONU, distribuídos pelas diferentes missões. A partir de 2003, observamos que o envio de tropas chinesas para este tipo de missões aumenta de forma quase constante até 2008, altura em que sofre estagnação. Ainda assim, comparando os números do século XXI com os do final do século XX, podemos constatar a progressiva relevância que Pequim atribui a este aspecto da sua política externa. Evan S. Medeiros menciona que as autoridades chinesas valorizam a ONU e pretendem que esta seja a instituição multilateral mundial onde a RPC promove a sua visão do sistema internacional e daquilo a que chama “Democracia nos assuntos internacionais”. Neste sentido, é interessante notar como a RPC sempre louvou a ONU como “a cidade” da cooperação multilateral e sempre votou contra o alargamento da composição do Conselho de Segurança da ONU a países como o Brasil. É igualmente relevante mencionar outro dado referido pelo mesmo autor, quando a RPC exerceu o direito de veto. Na verdade, a China utilizou, por duas vezes, o seu direito de veto para impedir missões de peacekeeping a países que reconheciam Taiwan, sendo que só utilizou este direito por seis vezes. De qualquer forma, a ideia mais importante que Medeiros expõe é a prioridade que a RPC dá à organização como palco onde pode reforçar a sua imagem de Estado responsável, e como tem utilizado as suas ações no seio do Conselho de Segurança para promover este estatuto. Esta motivação reflete-se na participação chinesa nas missões de peacekeeping, para as quais tem contribuído mais do que qualquer outro membro permanente do Conselho de Segurança.

As Forças Armadas Chinesas nas Organizações Regionais

O papel das organizações multilaterais regionais e internacionais para a consecução do objetivo de defender a soberania e integridade territorial chinesa não deixa de ser importante para este estudo, em particular, como é que a segurança multilateral e a utilização do vetor militar dentro deste quadro podem contribuir para este objetivo da política externa chinesa.

Um aspecto marcante do Novo Conceito de Segurança foi a catalisação e o fortalecimento das relações bilaterais e multilaterais da RPC. O estímulo das relações da China com o mundo iniciou-se com o fortalecimento das relações bilaterais, em especial com a Rússia, alargando-se mediante a inclusão da China em programas de segurança multilaterais, como é o caso do Fórum Regional da ASEAN em meados da década de 90, ou da sua participação na criação de novos mecanismos de segurança multilaterais, como é o caso da Organização de Cooperação de Xangai (SCO, em inglês Shanghai Cooperation Organization). Estes são dois casos paradigmáticos da participação da RPC em órgãos de discussão multilateral.

Em relação à ASEAN, a China estabeleceu contatos oficiais com a organização quando as suas relações bilaterais com os seis Estados que naquela altura a compunham não se encontravam completamente normalizadas, no ano de 1991. Neste ano, o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qian Qichen, foi convidado a comparecer na cerimónia de abertura do Encontro de Ministros dos Negócios Estrangeiros da ASEAN. Desde então, estreitaram-se as relações entre as duas partes. Em 1994, a RPC participou no Fórum Regional da ASEAN, obtendo o papel de Parceiro de Diálogo Consultivo, estatuto que seria elevado em 1996 para Parceiro de Diálogo Completo. Em 1997, o Presidente Jiang Zemin e os líderes dos países membros da ASEAN, do Japão e da Coreia do Sul, organizaram a primeira cimeira deste género, e anunciaram que tinham acordado estabelecer uma parceria de boa vizinhança e confiança mútua entre RPC e ASEAN. Esta foi a primeira cimeira da ASEAN +3, que reúne os Estados-Membros da ASEAN mais os três Estados mencionados. Em 2003, é assinado o documento que sela a Parceria Estratégica entre a organização e a RPC.

Em 1992, com o intuito de prevenir o início de um conflito no Mar do Sul da China, os Estados-membros da ASEAN ratificaram a Declaração Sobre o Mar do Sul da China, que exortava à cooperação entre os Estados em áreas diversas, tais como o combate à poluição marítima, a navegação segura, a coordenação de operações de busca e salvamento, o combate à pirataria e o tráfico de drogas. A RPC não participou no delinear destes princípios, mas Qian Qichen sublinhou que o Zhongnanhai os subscrevia. Esta subscrição de princípios não impediu que, ao longo dos anos, a RPC tenha optado por construir instalações em vários dos recifes e ilhéus em disputa.

As questões inerentes à segurança da região têm o seu espaço de discussão no seio da ASEAN. As relações oficiais com a organização permitiram a Pequim estabelecer diálogos de segurança com vários Estados-Membros e com a organização propriamente dita. Em 2002, China e os países da SEAN assinaram a Declaração de Conduta das Partes Envolvidas no Mar do Sul, onde se acorda a promoção da proteção ambiental marinha, pesquisa científica nos oceanos, segurança na navegação e comunicação nos oceanos, operações de exploração e salvamento e o combate ao crime transnacional, como o tráfico de droga e de armamento e a pirataria. A RPC acordou, em 2006, a patrulha marítima conjunta no Golfo de Tonkin com o Vietnã.

A questão da pirataria é tema relevante nos diálogos de segurança China-ASEAN. Em 2002, foi assinada a Declaração Conjunta sobre Cooperação nos Assuntos de Segurança Não-Tradicional. Cinco anos mais tarde, em 2007, numa cimeira ASEAN+1, chegou-se a um acordo de cooperação militar em assuntos de segurança não tradicional e a um acordo de cooperação na monitorização do Estreito de Malaca. Em 2009, realizou-se o primeiro encontro ministerial formal China-ASEAN para debater o crime transnacional e o primeiro workshop sobre segurança regional China-ASEAN com militares de alta patente.

As relações com a ASEAN permitiram à RPC fomentar relações bilaterais com alguns Estados-membros. Na última década, a cooperação em matéria de segurança com a Indonésia e a Malásia tem conhecido considerável aprofundamento. Em Outubro de 2013, os líderes políticos chineses e indonésios acordaram fortalecer a coordenação e comunicação relacionada com a segurança, através de consulta a nível dos ministérios da Defesa e de diálogo a nível da Marinha. Já o encontro entre os líderes chineses e malaios, em 2012, anunciou a continuação do intercâmbio militar de alto nível e a cooperação em áreas como o treino e a segurança não tradicional.

O outro caso paradigmático mencionado, a Organização de Cooperação de Xangai, tem natureza distinta. Esta organização nasceu formalmente em Xangai, em Abril de 1996, quando os chefes de Estado da RPC, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão decidiram estabelecer o “Fórum dos Cinco de Xangai”. Durante este encontro em Abril de 1996, os cinco países assinaram um acordo com vista ao fortalecimento da confiança no plano militar nas zonas de fronteira entre os Estados em causa. O acordo visava uma relação de compromisso entre os subscritores no qual comprometiam-se a não atacar militarmente um Estado subscritor, havendo direito à informação respectiva aquando da realização de atividades militares importantes nas zonas de fronteira.

Em 2001, na cimeira em Xangai, com aceitação do Uzbequistão como Estado-membro, foi alterado o nome do Fórum para Organização para Cooperação de Xangai. Esta alteração foi acompanhada pelo alargamento do seu âmbito, do espaço de discussão e de cooperação entre chefes de Estado, passando para uma organização intergovernamental de cooperação económica de segurança e de atividades militares. Esta organização permite a Pequim fortalecer as relações políticas, econômicas e de segurança com os vizinhos da Ásia Central e a aprofundar a cooperação no combate ao terrorismo, separatismo e extremismo. Ainda que, a partir de meados da primeira década deste século, a organização expanda os seus objetivos, note-se que foi criada tendo em vista resolver questões de segurança, em especial as relativas ao terrorismo. A RPC mantém-se como um dos atores mais dinâmicos dentro da organização dado que a mesma é fundamental na consecução do macro objetivo da política externa chinesa garantir a soberania e integridade territorial.

Em primeiro lugar, a RPC pretendia uma organização intergovernamental que facilitasse a resolução das questões das disputas fronteiriças com os países da Ásia Central. No que toca a este problema, a SCO revelou-se bem-sucedida tendo sido firmados acordos com vista à redução de forças nas zonas fronteiriças durante a década de 90. O abrandar da preocupação com as zonas de fronteira permitiu que a organização se focasse primordialmente nos três objetivos centrais da SCO acima referidos.

Com as questões fronteiriças resolvidas, atendeu-se aos movimentos separatistas no Xinjiang que procuraram alcançar a independência da região de forma ativa e violenta durante a década de 90; à ocorrência de vários ataques à bomba na região do Turquestão chinês em 1992, provavelmente causados pelo generalizar de movimentos independentistas após a queda da União Soviética; e à prevenção da infiltração destes movimentos em território chinês, que colocavam em risco não só a população mas também o governo chinês. Entretanto, foram estabelecidos canais de transporte entre a RPC e os vários países da Ásia Central recém-formados, o que permitiu não só a desenvolvimento de trocas comerciais, mas também o fluxo de migrantes, aumentando a interação entre gentes turcas. A conjugação de fatores contribuiu substancialmente para a penetração do pan-nacionalismo turco em território chinês. Note-se que o Zhongnanhai pretende evitar qualquer atividade que coloque em causa a integridade territorial chinesa. Devido à sucessão de ataques bombistas no Uzbequistão e no Quirguistão no final da década de 90 por parte de grupos extremistas religiosos, as autoridades chinesas identificam estes movimentos como terroristas, sendo que o combate a estas atividades é do interesse de Pequim e também dos países da Ásia Central, não só da RPC. A RPC, por uma questão de integridade territorial, pretende impedir as ações de movimentos separatistas, questão que é também de grande relevância para a estabilidade dos países da Ásia Central.

De fato, é notória a cooperação militar dentro da SCO no combate a este problema, a zona permanece bem isolada, e a fronteira do Xinjiang beneficia de vigilância contínua e é utilizadora de sistemas eletrônicos, forças policiais e militares. A troca de informação entre a China e os países da Ásia Central é muito forte e tem prevenido que os ataques por forças separatistas não têm recorrido a armamento sofisticado, o que atenua a letalidade do ataque e a sua expressão mediática. Contudo, os esforços conjuntos no âmbito da SCO não foram suficientes para impedir a ocorrência de ataques separatistas. Outra referência importante desta organização são os exercícios combinados. Foi no âmbito da SCO que o ELP participou num exercício militar conjunto em território chinês, o Cooperation 2003. Este foi o primeiro exercício militar conjunto no domínio da SCO, que enfatizou medidas antiterroristas e contou com mais de mil tropas da RPC, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. Atente-se ainda nos exercícios levados a cabo entre RPC e Cazaquistão em 2006, que combinaram elementos da guarda fronteiriça e unidades especiais. Ou os exercícios antiterroristas intitulados Tien-shan, ocorridos em 2006 e 2011 – realizados na região autónoma do Xinjiang.

Em 2014, realizou-se o SCO Peace Mission 2014, que juntou cerca de 7.000 tropas dos Estados-membros em exercícios antiterroristas na Mongólia Interior. Não obstante, ocorreram atentados terroristas em território chinês em 2013, bem como o primeiro atentado terrorista em Pequim no ano de 2014. A Rússia, durante a sua presidência na organização em 2008-2009, procurou aumentar a eficácia da luta contra o terrorismo e reforçar o papel de coordenação da Estrutura Regional Anti-terrorista, de forma a pôr em prática o programa da organização de contrariar atividades terroristas, separatistas e extremistas. Após os atentados do 11 de Setembro, a SCO tentou fazer parte da luta contra os grupos terroristas, cooperando com os EUA em diversas situações, inclusive com a criação do Centro Regional Antiterrorismo, em Bisqueque, ponto de troca de informações sobre atividades terroristas. Em consequência destas medidas, os EUA incluíram o grupo terrorista Uigur – que lhes era ignoto – na sua lista dos mais de 30 grupos terroristas registados. Embora não participando diretamente nas atividades militares no Afeganistão, a SCO tem providenciado à aliança de forças que intervêm no país, notável auxílio técnico, logístico e de transporte, inclusivamente fechando a sua fronteira com este Estado e impedindo o êxodo dos talibãs para a China.

Constata-se que, no âmbito da SCO, a proteção das fronteiras dos seus Estado-membros é um ponto importante da organização. Hoje em dia as fronteiras da RPC com os países da Ásia Central têm vigilância apertada, existindo uma forte troca de informação entre as várias autoridades. As autoridades utilizam esta cooperação para impedir golpes separatistas e garantir a integridade territorial chinesa e a soberania nacional sobre o Xinjiang, principalmente. Para além deste ponto, os exercícios combinados no combate ao terrorismo têm sido bastante fomentados no seio da organização, o que desenvolve a experiência das tropas chinesas no combate a esta ameaça. Melhorando o nível dos seus militares, e tendo uma boa capacidade de resposta combinada com forças de outros países, a RPC fortalece a sua capacidade de proteger a sua população e de impedir que a integridade territorial seja colocada em causa.

A construção de uma imagem de poder responsável

A partir da década de 90 do século XX, a ascensão econômica chinesa impulsionou o surgimento de um debate, fundamentalmente nos EUA, na Europa e no Japão, sobre a questão se esta ascensão poderia representa uma “oportunidade ou uma ameaça” para o sistema internacional. A esta discussão acabaram por juntar-se autores chineses, que recorreram a conceitos já aqui referenciados – como responsible power ou a própria “Ascensão Pacífica” – com vista a assegurar à comunidade internacional que a RPC não constituía uma ameaça.

A teoria da ameaça chinesa conhecia várias derivações. Em primeiro, a modernização militar que a RPC começava a pôr em prática e que podia desestabilizar a segurança regional estabelecida. Se assim fosse, o investimento econômico chinês, ao invés de uma oportunidade, representava um perigo para os países da região; por outro lado, a raiz ideológica do governo chinês, um país comunista com um desenvolvimento econômico espantoso que, a juntar a um eficiente uso do soft power, podia representar um modelo alternativo ao apregoado principalmente nos EUA e Europa.

Contudo, a principal questão apontava para o desenvolvimento econômico chinês, condição fulcral para o desenvolvimento militar. O potencial problema que esta situação colocava era se a RPC representava uma ameaça militar ou uma oportunidade econômica. A percepção que alguns autores ocidentais demonstraram em relação à RPC, ao seu desenvolvimento e crescimento internacional, está bem patente na obra Red Dragon Rising: Communist China’s Military Threat To America, na qual os autores afirmam claramente que o ELP é uma ameaça bem real para o próprio povo chinês, para toda a Ásia, para os EUA e para todos os países democráticos do mundo. De fato, em alguns dos defensores da teoria de que a RPC representa uma ameaça à estabilidade regional, é discernível uma aversão ao PCCh, cuja raiz remonta, provavelmente, à época da Guerra Fria, sendo que após os confrontos na Praça de Tiananmen, o sentimento de desconfiança adensou. Como comprova o embargo ao comércio de armas com a China por parte dos governos ocidentais, os incidentes na emblemática praça de Pequim marcaram um distanciamento entre RPC e os governos euro-americanos, que se encontravam em processo de reaproximação. Entretanto, o debate sobre a ameaça chinesa não desapareceu. Em Junho de 2015, foi publicado na revista norte-americana The Atlantic um artigo cujo título é "Just How Great a Threat is China?".

Desta forma, a RPC decidiu tomar medidas para se aproximar da comunidade internacional, em especial dos países asiáticos. Desenvolvendo ofensiva suave através da cooperação, da diplomacia e da participação em organismos regionais ou em fóruns multilaterais de cooperação com parceiros asiáticos, de forma a manter boas relações de vizinhança, mostrando que o seu crescimento era uma oportunidade e não uma ameaça.

Na última década, o soft power chinês também tem vindo a estabelecer-se nos oceanos, com a Marinha do ELP a promover ativamente a diplomacia naval. Entre Setembro e Dezembro de 2013, uma frota de três embarcações chinesas cruzaram pela primeira vez o estreito de Magalhães, parando na Argentina, Brasil e Chile, naquilo que constituiu um marco histórico. Em Janeiro de 2015, outra frota de três embarcações chinesas visitaram o porto de Hamburgo, na Alemanha, como parte de uma campanha de diplomacia naval por toda a Europa. Esta foi a segunda vez que a Marinha do ELP visitou um porto alemão, sendo que o Contra-Almirante Zhang Chuanshu sublinhou a necessidade da cooperação militar sino-germânica. Em 2014, as autoridades chinesas enviaram uma frota de quatro embarcações para participar no exercício Rim of Pacific no Havai. Também este acontecimento representa um marco histórico nas relações entre a Marinha do ELP e a Marinha Norte-Americana.

No plano militar, o conceito de Operação militares que não envolvem guerras/Military Operations Other Than War (MOOTW) assume, a este ponto, considerável importância. O ELP descreve as MOOTW como atividades militares cujo foco não é a guerra – missões de peacekeeping, assistência em catástrofes, missões antipirataria no golfo de Áden, contra terrorismo, apoio médico militar regional e segurança doméstica para grandes eventos. Um exemplo deste tipo de operações foi a National Extraction Operation levada a cabo pela Marinha do ELP na Líbia, em 2011. A situação tumultuosa no país do Norte de África colocou em risco de segurança as instituições, empresas e cidadãos chineses na Líbia. As forças armadas chinesas resgataram 35.860 cidadãos chineses da Líbia, fazendo-os regressar à China, naquela que foi a maior operação de evacuação além-mar desde a fundação da RPC. Em Abril de 2015, a RPC voltou a organizar uma missão de resgate, desta vez no Iémen, enviando uma fragata que evacuou 225 pessoas de 10 países diferentes, nenhum deles sendo a China. Esta foi a primeira vez em que militares chineses evacuaram cidadãos não-chineses numa missão de assistência humanitária.

Conclusão

Para a China, reforçar o PNA significa desenvolver o potencial econômico e o seu estatuto internacional, já este é a totalidade do poder econômico, militar e político do país num determinado período. O aumento do PNA é, porventura, o objetivo superlativo da RPC, sendo compreensível que o desenvolvimento econômico seja fulcral para ampliar o PNA do País do Meio. Contudo, por si só, não será suficiente para fortalecer o seu estatuto internacional, o potencial militar ou o poder político. É indubitável que o avanço econômico é extremamente importante na acumulação de PNA, mas não pode ser considerado como o único instrumento que a política externa chinesa possa utilizar para conseguir essa acumulação de poder. Assim, é o aumento sustentado do poder político, econômico e militar que pode fortalecer o poder global da RPC.

É perante este quadro que pretendemos compreender, primeiramente, quais são os objetivos de política externa da RPC no período de “Janela de Oportunidade Estratégica”, um período que Jiang Zemin considerou em 2002, com ambiente externo propício para a revitalização nacional da China como um Grande Poder. Posteriormente, procuramos, perceber como é que o vetor militar pode contribuir para a consecução desses objetivos.

Após o discorrer sobre a evolução das retóricas oficiais das autoridades chinesas, dos conceitos-chave da sua política e de várias análises externas que versaram sobre ela, respondemos à questão identificando o “Desenvolvimento Económico”, a “Defesa da Soberania e a Integridade Territorial” da China e a “Construção de uma Imagem de Poder Responsável” como os três principais objetivos.

Importa-nos notar que consideramos que há uma inter-relação entre os três macro objetivos identificados. Ou seja, tanto o objetivo de “Defender a Soberania e a Integridade Territorial” chinesa, como o de “Construir uma Imagem de Poder Responsável”, contribuem para o objetivo “Desenvolvimento Econômico” e vice-versa. Vejamos o exemplo da defesa da integridade interna apresentando neste trabalho: se Pequim conseguir manter as suas fronteiras em segurança, evitando o surgimento de ataques separatistas e terroristas no seu território, poderá manter a estabilidade interna e canalizar os seus recursos para o desenvolvimento econômico do país. Contudo, é desenvolvendo continuamente a economia nacional que a RPC consegue apostar na capacidade de consecução dos outros dois objetivos, ou seja, a capacidade econômica da China permite um maior investimento nas forças armadas, o que é essencial para que estas tenham a capacidade de projetar a imagem da RPC enquanto Poder Responsável, e também para fortalecer as capacidades para a defesa da integridade territorial chinesa. Esta inter-relação faz com que seja difícil que exista uma evolução sustentada do vetor militar sem o desenvolvimento econômico ou, a existir, é provável o desinvestimento noutras áreas da sociedade.

A defesa da soberania e integridade territorial chinesa tem influência no desenvolvimento econômico. Por exemplo, se conseguir manter as suas fronteiras estáveis, Pequim pode concentrar mais recursos para o desenvolvimento da economia. Mas a relevância deste objetivo não se restringe à vertente econômica. Garantir a integridade territorial é essencial para a proteção dos cidadãos da China, que correm risco de vida sempre que há um ataque terrorista. Para além disto, questões de soberania e integridade territorial, como por exemplo a questão de Taiwan, são muito sensíveis junto de correntes nacionalistas da população. Este é um fator que é importante para a continuidade do PCC no poder, pois um dos garantes da sua legitimidade – a par da continuação do desenvolvimento econômico – é a salvaguarda da integridade territorial e soberania nacional. Se ceder neste aspecto, o PCCh será acusado de submissão por estas correntes nacionalistas, e encontrará a sua legitimidade colocada em causa.

Face à dependência da RPC das exportações e importações de mercadorias e de recursos energéticos, é de extra importância que as forças armadas chinesas tenham a capacidade de proteger o transporte marítimo. Da mesma forma, em relação à identificação da China como um Poder Responsável, também podemos fazer uma interligação com os outros dois macro objetivos identificados. Tomando o exemplo das missões antipirataria, quando os líderes chineses decidiram participar nestas missões juntamente com forças internacionais, podemos identificar uma conexão com a defesa dos interesses econômicos chineses, em particular com a defesa do desenvolvimento econômico contínuo. Visto que, ao participar nestas missões, a Marinha do ELP está igualmente a proteger as embarcações chinesas que fazem a travessia pelo Corno de África, transportando importações e exportações chinesas. Note-se que em 2008, ano em que a RPC inicia a sua participação em missões antipirataria no Golfo de Áden, sete embarcações chinesas sofreram ataques de piratas somalis.

Assim, na luta contra a pirataria as forças armadas defendem as importações chinesas, os interesses econômicos chineses e, ao mesmo tempo, contribuem para a segurança marítima internacional. Ao participar nestas missões, Pequim está a contribuir para a segurança marítima internacional cooperando com forças internacionais, o que em termos de atuação contribui para ser posicionado como um “Poder Responsável”. Por sua vez, o reforço do seu estatuto internacional como Poder responsável permite “combater” a teoria da ameaça chinesa enquanto concepção patente no ideário da comunidade internacional e, em particular, dos seus Estados vizinhos.

O aumento de confiança na capacidade chinesa de atuar enquanto Responsible Power poderá ter consequências benéficas para a sua economia porque poderá ser uma peça fulcral para a desconstrução da teoria da ameaça chinesa. Conseguindo esta desconstrução, será mais fácil para Pequim fomentar boas relações diplomáticas com mais Estados, o que pode facilitar a assinatura de acordos econômicos. Para além disso, se as forças armadas chinesas conseguirem convencer as potências europeias de que as suas forças armadas atuam de forma responsável enquanto produtoras de segurança, existe uma maior possibilidade de ser levantado o embargo de armamento europeu à China que vigora desde os incidentes em Tiananmen.

Desta forma, a participação da vertente militar na construção de uma imagem de “Poder Responsável” é extremamente importante, já que com o fortalecimento e modernização das forças armadas, o ELP tem maior capacidade de participar em iniciativas de cooperação e ajuda internacional, promovendo a RPC como um Poder Responsável e apoiando a desconstrução da ideia do desenvolvimento da China como uma ameaça. Na verdade, se os Estados asiáticos reconhecerem a ideia de que a RPC é um Estado Responsável e não uma ameaça à sua soberania, poderá haver maior probabilidade de a própria periferia chinesa se manter mais estável. A estabilidade na região é um contributo importante para que exista um ambiente favorável ao desenvolvimento econômico e é um requisito para que a RPC continue o seu processo de rejuvenescimento como um Grande Poder.

O progresso científico e tecnológico no âmbito militar aumenta as capacidades A2/AD, o que coincide com objetivos específicos – impedir que Taiwan declare independência de jure e impossibilitar ameaças provenientes do exterior. As capacidades de reconhecimento espacial por satélite, reconhecidas superiormente como essenciais para que o ELP acompanhe a RMA e para a doutrina de Guerra Local, aumentam exponencialmente o know-how informático e são fulcrais na localização de potenciais ameaças. Por outro lado, a capacidade do armamento antissatélite dificulta a recolha de informação sobre a RPC por parte de potenciais adversários. O País do Meio investe na capacidade de controle da informação, lançando centenas de satélites para o espaço nos últimos anos, e o controle da informação torna-se fator essencial, e não só em tempos de guerra, pois a soberania do território inclui a soberania sobre a informação, esta é uma parte importante da Information Warfare, essencial para que as autoridades chinesas garantam a soberania e integridade territorial do seu país.

No trabalho identificamos três situações em que a vertente militar desempenha um papel importante na construção de da China como um Poder Responsável: em primeiro lugar, as missões de peacekeeping, cujo principal teatro de operações é o continente africano e para as quais se encontram destacados milhares de chineses. Em segundo lugar, a construção do navio-hospital Peace Ark, que ancora em portos em todos os continentes, prestando assistência médica às populações locais. E em terceiro lugar, a participação das forças armadas chinesas em missões antipirataria no Golfo de Áden.

Em síntese, o papel da vertente militar chinesa na consecução dos objetivos de política externa delineados é vasto e, nalguns pontos bem-sucedido, noutros com menor taxa de sucesso. A participação das forças armadas na segurança energética é de grande relevância e beneficiou de reforço. Para este reforço contribuiu o processo de modernização das forças armadas, sob orientação esclarecida, possibilitando à RPC enfrentar questões específicas (a pirataria, Taiwan, a proteção das importações e exportações, projeção de força e benignidade da imagem da China). A construção de uma imagem de Poder Responsável dificilmente terá êxito junto dos países do Sueste Asiático que têm interesses conflitantes com o País do Meio. Contudo, a RPC parece estar, lentamente, a aproximar-se do seu objetivo de garantir a soberania e integridade territorial ao ocupar de forma gradativa posições em áreas em disputa. A sua assertividade também tem vindo a ser gradualmente aumentada. É indubitável que as forças armadas chinesas estão a passar por uma fase de forte mudança e de modernização, com a supressão de lacunas a vários níveis: redução de número, especialização das tropas, modernização tecnológica, condições de treino.

Fontes:
https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/59618
https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/59618/34812
https://run.unl.pt/handle/10362/18315
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https://traduagindo.com/2020/03/22/a-estrategia-militar-da-china-para-o-seculo-xxi/
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http://www.ebrevistas.eb.mil.br/CEEExAE/article/view/2247
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https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/5639/1/MO%206087%20-%20TERRA.pdf
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